Marco Florentino
Em prosa e verso
Textos
O QUE É ISSO COMPANHEIRO?
O QUE É ISSO COMPANHEIRO?

Diálogo entre eu e o diretor clinico de um hospital secundário da região metropolitana de uma grande cidade do nordeste, a respeito da grande demanda de atendimento às crianças num período sazonal de viroses e que no referido hospital, apesar de referencial, só tem um pediatra no atendimento emergencial noturno.  

Diretor:
Dr Mardônio, boa noite
Fulano, diretor clínico do Municipal da cidade.
O senhor está no plantão hoje a noite?

Eu:
Sim Dr. Fulano e desculpe a demora para responder pois só agora (05:00),pude vir pro repouso.
Hoje tive um imenso aborrecimento no plantão e por incrível que pareça, não foi com os pais de pacientes e sim com o pessoal da direção.

Foram dizer que eu abandonei o plantão. Um absurdo que pretendo levar adiante.
Vou fazer um relatório detalhado e minucioso para levar ao conhecimento das direções (clínica e administrativa), pra Secretaria de Saúde, de Administração e até da prefeitura.

A situação da pediatria à noite esta caótica e insustentável. Alguém precisa levar ao conhecimento das instâncias superiores antes que aconteça algo mais grave que venha expor o hospital de forma mais comprometedora.

Em tempo: Nunca falto plantão, quanto mais abandonar.
Se quiser podemos conversar pessoalmente. É só marcar.
Desculpe o horário mas foi o único possível. Forte abraço.
Bom dia,  Dr. Mardônio.

DIRETOR:
Compreendo e estou repassando quase que diariamente a questão da Pediatria tanto pra terceirizada como para a Secretaria Municipal de Saúde.

Contudo, sair da unidade pra atender em um local externo está colocando apenas o senhor em uma situação frágil. Recebi ligações inclusive da secretária de saúde questionando a conduta.

Perceba que temos, sim, uma unidade frágil, porém, a permanência do profissional fora do posto de trabalho caracteriza abandono de plantão. Isso aí é elementar, dr. Mardônio. Eu compreendo a sua lógica e a sua revolta, mas estou lhe falando isso para lhe aconselhar mesmo. Caso o senhor fosse denunciado ao CREMEC, os argumentos seriam inválidos, visto que, com todos os argumentos do mundo, ficaria provado que o senhor permaneceu fora da unidade por tempo suficiente para que se caracterizasse o abandono.

Além de se expor a uma denúncia grave ao CREMEC, perceba que a sua permanência fora já foi filmada, exposta em grupos de gestão e ninguém até o momento consegue entender a lógica, visto que nenhum outro pediatra tem tomado atitudes semelhantes às do senhor. Então, além de tudo, se uma filmagem dessa viralisa nas redes sociais, como sabemos que é bem fácil de acontecer na Caucaia, o senhor estaria exposto e sendo acusado, ainda que, sob sua ótica, injustamente, de não permanecer no plantão.

Imagine que chegue uma criança grave no hospital com o senhor no posto? É óbvio que entre o tempo de o senhor chegar as pessoas estariam questionando a ausência do médico e ao saber que o senhor não se encontrava no Hospital, iriam acusar a unidade de não ter pediatra e ao senhor de omissão de socorro.

EU:
Entendi e agradeço sua preocupação, mas veja bem, como médico do trabalho antigo e de várias empresas, inclusive da empresa de transportes Vistosa, na cidade,  além de perito da justiça (inclusive fui médico do trabalho do hospital durante mais de três anos),  conheço profundamente a legislação trabalhista e garanto que o que eu fiz não caracteriza abandono de plantão... pode consultar qualquer advogado ou procurador.

Não seria louco de fazer algo que me prejudicasse. Eu simplesmente assumo o plantão no hospital, peço e deixo os pacientes se cadastrarem para o atendimento e me desloco com eles para o posto de saúde, um estabelecimento da prefeitura que fica a um minuto do hospital, outro estabelecimento da prefeitura.

Atendo os de risco verde e amarelos que são possíveis de atender no posto. deixando claro que os mais complexos amarelos, laranjas e vermelhos, atendo imediatamente no hospital, pois não levo nem um minuto pra chegar.

Veja bem Dr. Tiago, a situação da emergência pediátrica à noite é grave devido a demanda para um só pediatra. Todos os plantões tem ocorrido com situações de crises devido a inconformação dos pais quanto à classificação de risco. Os verdes simplesmente não vão para o posto e não aceitam a demora do atendimento.

A demanda tem sido alta. Imagine que atendo em média 10 pacientes por hora (seis minutos para cada um , o que é um tempo extremamente exíguo para um atendimento razoavelmente regular. Quando assumo o plantão à noite já tem  mais de dez esperando do período da tarde (entre novos e retornos). Só esses vão levar uma hora. Durante a noite toda a demanda, pelo menos nos meus plantões, tem sido de mais de cinquenta atendimentos entre novos, retornos e enfermaria do PS.

Há mais de três meses tenho assumido os plantões avisando aos pacientes sobre o protocolo de atendimento, inclusive informando que estou sozinho, o que faz com que se acalmem mais, porém sempre tem aqueles que se agitam e acabam contaminando os outros. Essa situação expõe demais toda a equipe, a começar pelos recepcionistas, seguranças e principalmente as enfermeiras responsáveis pela triagem. Quando chega no pediatra, a confusão já é muito grande, expondo também este profissional.

Há mais de vinte anos trabalho no município e sempre foi complicado, porém, eram raras as situações extremas de agressão. Com a maior burocratização do sistema e aumento do tempo de atendimento, somado às circunstâncias de pós pandemia, parece que as pessoas ficaram mais sensíveis e menos tolerantes, gerando essas confusões diárias.

Fica a pergunta: Porque somente os pediatras da emergência noturna ficam sozinhos? (Os traumas também ficam, porém a demanda é muito menor). Recepcionistas, enfermeiros, técnicos, cirurgiões, clínicos, intensivistas e até maqueiros (com todo respeito por eles, mas à noite quase não tem o que fazer) trabalham revezando.

Depois que assumo o plantão não tenho tempo nem de jantar e nem de ir ao banheiro. Toda a equipe é testemunha disso. Além de ser cruel, é abusivo e você me alertou bem, é motivo para ser denunciado ao CRM e Sindicato, coisa que se depender de mim não vai acontecer, pois acredito que possa ser resolvido internamente. Antes da sazonalidade viral, sugeri à diretoria anterior (Dr. Januel), um reforço inicial de outro pediatra pelo menos até às 23:00 horas, mas nem isso foi sequer estudado. A prefeitura preferiu, com todo o custo envolvido, instalar um posto 24 horas que não melhorou a efetividade do atendimento na emergência pediátrica do hospital ao invés de pagar muito menos a outro profissional.

Por outro lado Dr. Tiago, nunca vai chegar um paciente grave e ficar mais de 5 minutos sem atendimento eu estando no posto, pois deixei claro à equipe da recepção que me chame imediatamente. É muito mais provável tal atendimento demorar no protocolo de atendimento do que da forma como eu estou fazendo.  

Demora mais um profissional vir do repouso atender do que eu, no posto, correr para o hospital. Veja bem, estou atendendo para o hospital e ainda, de sobra, para o posto, pois a dinâmica de atendimento deste faz com que eu triplique a quantidade de atendimentos por hora.

Nunca deixo desguarnecido o hospital, pois está há um minuto do posto de saúde. Por volta das 23:00 todos os pacientes já foram vistos e prontamente atendidos. Então volto a ficar permanente no hospital. Veja bem, juridicamente não caracteriza abandono de plantão pois todos os paciente são atendidos e com boa aceitação. O que ocorre é mudança provisória de estabelecimento, mas a operacionalização do atendimento permanece. Se conseguirem me mostrar na legislação em vigor qualquer coisa em contrário, me rendo ao argumento, mas não sem antes questionar, via judicial, outras interpretações.

Pensa bem Dr, não seria mais fácil e barato evitar todo esse problema colocando pelo menos mais um reforço até às 23:00 h durante esse poucos meses sazonais de viroses? Seria de FEV a MAI de cada ano (4 meses). Por que essa discriminação com a pediatria?

Vou fazer um relatório mais detalhado e minucioso sobre isso. Primeiro vou discutir com a direção. Se não for possível chegar a uma solução, vou levar para outras instâncias... Secretaria Municipal de Saúde, de ADM e Prefeitura. Depois CRM e Sindicato. Talvez até Ministério Público. Aliás, pro CRM, graças à sua observação, vou levar imediatamente, inclusive para o jurídico do Conselho. Tenho certeza que não estou fazendo nada de errado, ao contrário, estou procurando fazer o melhor para a nossa clientela que são as crianças e adolescentes da cidade, tentando preservar o bom nome da gestão política e administrativa do município.

Pra encerrar (depois dessa enorme carta com a qual mais uma vez me desculpo), procure saber da diferença de atendimento pediátrico entre UPAS e o hospital. Não há como comparar e olha que lá tem dois profissionais atendendo a pediatria. Isso faz com que eu tenha boa parte da comunidade que atendo, a meu favor.

Nunca, em 40 anos de emergência pediátrica em várias regiões do Brasil, inclusive na Amazônia pela Marinha do Brasil, passei por situação semelhante e olha que atendi e atendo a todos os serviços privados e públicos de Fortaleza e região metropolitana, além de Belém, Manaus, Porto Velho, Boa Vista, Macapá, Natal (onde fui professor da UFRN), João Pessoa, Cuiabá, São Luis e Teresina.

Apesar dessa enorme mensagem, ainda é pouco pelo que tenho a falar. Já sofri 4 infartos e uma parada cardio respiratória prolongada (de trinta minutos) no pós operatório imediato da revascularização miocárdica (tenho três pontes e três stents, inclusive um numa das pontes).

Não quero ter outro infarto pela raiva que o Hospital e a Secretaria de Saúde do Município me faz.
Forte abraço, obrigado pelos conselhos, pela paciência e parabéns pela gestão. De você não tenho nada a reclamar, pelo contrário, gostaria de lhe conhecer pessoalmente. Fica bem.

DESCASO AVILTANTE

Quando o avilte à saúde acontece
Todo o sistema sanitário degenera
E assim o usuário é quem padece
Porém ao médico a culpa prolifera

Ninguém vê as faces dos gestores
Sujos covardes que se escondem
Maneiam as ações dos bastidores
E pra suas falhas, não respondem

São autênticos hipócritas egoístas
Alpinistas que só veem conquistas
Públicos e privados, são universais

Dane-se o fraco e seus sofridos ais
Sente quem está na linha de frente
Trauma que carregará para sempre

Marco Antônio Abreu Florentino
Marco Florentino
Enviado por Marco Florentino em 13/04/2023
Alterado em 13/04/2023
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