Marco Florentino
Em prosa e verso
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REFLEXÕES SOBRE A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
REFLEXÕES SOBRE A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS
Mais uma vez a humanidade está diante de uma crise devastadora causada pelo pior dos inimigos... um diminuto ser de estrutura primitiva, formado apenas por uma cápsula proteica e um material genético ou ácido ribonucleico (RNA) mas que é capaz de afetar ou mesmo dizimar milhares ou milhões de pessoas de forma global, sem qualquer distinção de raça, cor, sexo, religião ou classe social.

Assim como as guerras que assolam a humanidade desde sua origem, as epidemias causadas por agentes patogênicos microscópicos também vem acompanhando a evolução do homem na Terra, com a enorme diferença de que, nas guerras a motivação geralmente ocorre pela afronta que a vontade de poder de homens atinge outros homens, tolhendo seus princípios fundamentais de liberdade e bem estar, ceifando valores como igualdade e rompendo drasticamente o contrato social norteador da fraternidade.

Já nas grandes epidemias, a afronta do homem se faz contra a natureza que, num determinado momento reage de forma avassaladora, seja num terremoto arrasador, num tsunami catastrófico ou numa pandemia devastadora.

Assim foi com a peste negra na idade média com estimativa de mais de 100 milhões de vítimas fatais, a tuberculose que nos atinge até os dias de hoje contabilizando a impressionante cifra acumulada de um bilhão de mortos, a varíola do final do séc. XIX até 1980 com 300 milhões de perdas humanas, a gripe espanhola no início do séc. XX igualmente devastadora e agora o novo coronavírus.

Mas como um bom aprendiz do pensamento dialético hegeliano no qual toda tese gera naturalmente uma antítese correspondente e uma posterior síntese como resultante de forças antagônicas, acredito que em todos esses desafortunados eventos podemos refletir a nossa condição de ser social através da análise dos eventuais problemas, defeitos e falhas e repensarmos nossa forma de conduzir políticas públicas, comportamento social e valores individuais que possam contribuir para que nossa existência seja menos penosa.

Particularmente considero o SUS um dos melhores sistemas de saúde do mundo. Tenho orgulho de ter participado da Oitava Conferência Nacional de Saúde em 1986, o qual instituiu o SUS como sistema de saúde cujos princípios são: Universalidade, Integralidade, Equidade, Descentralização e Participação Social. Entretanto, nesses mais de trinta anos, o subfinanciamento do setor, gestões desastrosas e a corrupção contribuíram irremediavelmente para a falência do mesmo.
     
Nesse contexto, compartilho o excelente texto de um contemporâneo da faculdade de medicina da UFPA, companheiro de diretório acadêmico e parceiro de congressos e lutas por melhores condições de ensino médico.

Através de uma análise lúcida fundamentada pelo conhecimento teórico abalizado e uma vasta experiência na saúde pública, Rômulo Paes de Sousa, pesquisador titular da FIOCRUZ Minas, expõe de forma didática e direta a realidade dos sistemas da saúde no mundo, mormente o do Brasil e sua fundamental relevância no combate da atual pandemia.

Marco Antônio Abreu Florentino
Médico do Trabalho (AMB / ANAMT)
Pediatra (SBP / CFM)
Infectologista (UFPB)

TEXTO DO DR. RÔMULO PAES DE SOUSA:
Se é verdade que o acaso não favorece os despreparados, mais verdadeiro é que a tragédia se abate de forma mais cruel sobre os ineptos. A pandemia do coronavírus se espalha celeremente pelo mundo, testando as capacidades dos países de lidar com uma gigantesca crise sanitária, com inevitáveis consequências sobre a economia, a vida social e a política dos países.

No momento em que escrevo este post (6:30 da manhã de 19/03/2020), temos: 220 mil casos confirmados, 9 mil óbitos, 84 mil recuperados, em todo o mundo. O Brasil já responde por 529 casos confirmados, 4 óbitos e 2 recuperados. Todos estes números serão revistos depois da tempestade já que eles são uma aproximação do que está acontecendo de fato, visto que não temos nem cobertura, nem qualidade homogênea de atenção à saúde para garantir os números provenientes de todo o planeta.

Como em todas as crises, cada país procura mobilizar o que tem de melhor para lidar com o problema. Obviamente, suas fraquezas também são evidenciadas. Portanto, é no confronto destas forças antagônicas que vidas são ganhas ou inutilmente perdidas.

Os países industrializados da Ásia enfrentaram a pandemia com uma excepcional mobilização de recursos físicos e tecnológicos. Também mobilizaram pessoal capacitado e imobilizaram grandes contingentes populacionais, impondo de várias formas um extenso isolamento social.

Seja por imposição, seja por adesão, China (incluindo Hong Kong), Japão, Taiwan, Coreia do Sul, pararam parcialmente seus países para desacelerar a propagação da doença. Tem funcionado.

O epicentro da pandemia se deslocou para Europa. Em tese, este seria o melhor território para se combater o vírus: o continente mais homogêneo em termos econômicos e sociais; o berço da revolução industrial, dos sistemas nacionais de saúde e dos modelos de proteção social; um espaço densamente povoado por pessoal altamente qualificado e com o melhor sistema rodoferroviário do planeta. Com tudo isso, a Itália amarga uma tragédia gigantesca, enquanto Espanha, Alemanha e França correm atrás do prejuízo.

Cá deste lado do oceano Atlântico, nos perguntamos como será o nosso fardo no momento em que o centro da pandemia escorregar para baixo da linha do Equador, quando bater com mais força na América do Sul?

No Brasil, a construção de seu sistema de saúde desenvolveu uma atenção primária extensa e capilarizada, deu-nos também a descentralização (que permite respostas rápidas e criativas por parte dos municípios), dotou-nos de uma vigilância epidemiológica profissionalizada e articulada internacionalmente. Isto centrado em uma gestão participativa e com agências fortes para regulação dos bens e serviços de saúde (ANS e ANVISA).

Contudo, as crises também desvelam as nossas mazelas: o subfinaciamento do setor; o hibridismo de um modelo, no qual subsistema público que não se entende bem com o subsistema privado; as brutais desigualdades regionais e de acesso aos níveis de atenção de maior complexidade; a má articulação entre os níveis de atenção primária e secundária; e principalmente o deletério esforço de deslegitimação do setor público e mais recentemente da própria ciência.

Os brasileiros assistem com perplexidade os movimentos erráticos do governo federal. Ora falando sério, ora tripudiando da crise global. Surpreendem-se com a falta de articulação entre o setor publico e o setor privado. E mais, assistem um país reagindo à crise com uma coordenação precária e pânico crescente.

Já que não temos a menor chance de reagir como asiáticos, desconfiamos estar agindo como italianos, sem os recursos que estes dispunham. O mais provável que estejamos seguindo no caminho do meio, sem aproveitar o que o sistema de saúde do Brasil tem de melhor e não aproveitando a oportunidade para reduzir os nossos históricos e recentes problemas.

O melhor de tudo é que o som das panelas iradas parece ter acordado grande parte do governo que investia contra óbvio. Ainda não entenderam o sentido e forma de se usar uma máscara cirúrgica, mas já entraram no tema.

Rômulo Paes de Sousa
Epidemiologista da Fiocruz
Marco Florentino e Romulo Paes de Sousa
Enviado por Marco Florentino em 22/03/2020
Alterado em 17/06/2022
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