Marco Florentino
Em prosa e verso
Textos
RESIGNAÇÃO
Pequeno conto em homenagem a Luiz César Nogueira de Carvalho, escrito em 2005, logo após a fundação da confraria etílico cultural formada por quatro colegas que trabalhavam numa grande empresa de saúde privada de Fortaleza, a saber: Luiz César, Francisco das Chagas Barros Brilhante, Marco Antônio Abreu Florentino e Ana Paula Hortêncio. Criaram a ¨Nova Padaria Espiritual¨ que durou, pelo menos, dez anos, com vários integrantes. Luiz Cézar era o líder e editor, com a publicação do jornal  ¨O Liceu¨ e inúmeros artigos sobre política, filosofia, história, música, arte em geral, cotidiano e conversa para se jogar fora. Atualmente Luiz se recupera de uma complexa cirurgia para contenção e provável cura de uma carcinomatose peritoneal. Sei o quanto é dolorida, penosa e demorada a convalescença, mas espero com otimismo seu retorno para breve podermos relembrar tempos tão gratificantes e felizes.  

RESIGNAÇÃO
    
            Em uma grande e conceituada empresa de saúde constituída por funcionários e técnicos de diferentes ramos de atuação, trabalhava há alguns anos, aos tropeços, balanços e atropelos, Lucarélio e uma trupe de profissionais aparentemente dedicados e conscientes dos seus deveres laborais, tal qual um sacerdote investido na condição de vigário antigo de uma paróquia adormecida e passiva às intempéries e mudanças bruscas de tempo... e humor.
            Naquele dia em particular, uma estranha sensação, um tanto quanto desagradável, se fazia sentir mais intensamente no ambiente. Não, definitivamente não era naquele dia em particular e muito menos uma sensação estranha. Lucarélio sabia que eram todos os dias. Sempre se esforçava para entender a causa de tal sensação e se ocorria somente com ele... justamente ele, profissional competente com larga experiência de trabalho em diversos ambientes, com os mais singulares representantes da família, gênero e espécie humannus nordestinnus cearenssis.
            Filho legítimo da decrépita burguesia local, Lucarélio, desde criança, não se deixava levar pelos valores hipócritas de uma elite elitizada e mascarada por indivíduos travestidos de caridosos, justos e corretos, daqueles que frequentam a missa todos os domingos, se não pela manhã, impreterivelmente no final da tarde, mesmo não tendo nítida ideia do significado desses rituais, pois no outro dia começam a semana exteriorizando toda a excrescência de seus egoísmos, individualidades e arrogâncias, demosntrando na prática, a nulidade de seus pretensos projetos de salvação com Cristo. ¨ Legítimos¨ defensores da moral e dos bons costumes, herdam dos seus ilustres ancestrais o odioso costume de se esconder atrás de uma religião, seita ou sociedade filantrópica, como uma Ku Klux Klan em terras latino americanas.
            O menino sonhava em se tornar um operário da medicina para que pudesse exercer sua vocação socialista, germinando consciência política em seus pares através do atendimento médico, da palavra escrita ou mesmo, se necessário, pela luta armada, numa possível e épica guerrílha urbana brasileira, porém com retoque francês de liberdade, igualdade e freternidade. E assim foi... abençoado Ernesto Che Danton Alencarino.
            Ingressou com louvor no cobiçado curso, para alegria do pai, tão severo em seus gestual e comportamento quanto doce em seu espírito, atormentado pelo conflito interior travado entre seus sentimentos humanos, demasiado humanos e sua condição de super homem. Acostumado às rudezas do dia a dia, nunca imaginaria que acontecimento tão marcante na família viesse a ser responsável pela virada radical no comportamento do filho, que logo após seu ingresso na academia, mostrou para que veio.
            Iniciou sua jornada política intelectual nos movimentos de base estudantil, participando ativamente das reuniões e encontros dos diretórios acadêmicos das universidades, muitas vezes ¨espúrios¨ e escondidos, em noites clandestinas de lobisomens e bruxas, duendes e leprechauns, orgias e delírios, gemidos e embriagues. Numa época politicamente conturbada, onde artistas, pensadores, donas de casa, operários e camponeses falavam de lado, olhando pro chão, Lucarélio optou pelo radicalismo, desafiando abertamente o poder constituído e entrando num labirinto escuro de lama, teias, vermes, ratos de esgoto e um imenso e implacável minotauro de farda e quepe, sedento de urros e lamentos nascidos de mil torturas fabricadas nas masmorras e porões úmidos e esquecidos da nossa consciência.
            Saiu do país com 25 anos de idade, sendo este um período pouco conhecido da sua vida. É sabido que se refugiou na velha terra lusitana de seus ancestrais e depois numa jovem independente nação africana de língua portuguesa, qua amargava uma situação de instabilidade política e social, com exposição explícita e banalizada da miséria humana, contendo todos os ingredientes a gosto da impetuosidade e espírito humanista de Lucarélio. Corre a boca pequena que chegou a participar de luta armada e que, na defesa intransigente do seu socialismo moreno, se viu na situação extrema de ter que matar gente... um absurdo irônico, justamente com ele, que sempre valorizou gente, afirmando com frequência que gente é pra brilhar e não sofrer.
            Uma outra passagem, que flutua entre mito e realidade, diz respeito a uma estranha e misteriosa peregrinação de Lucarélio a um deserto próximo, onde se refugiou para oração e meditação, quando no quarto dia de isolamento e jejum, teve um encontro, decisivo em sua vida, com um espírito todo paramentado de vermelho e negro, com detalhes rendados de brilhantes, de uma formosura ofuscante e com belas e delicadas linhas faciais, como um anjo, entretanto, apresentava odor intensamente fétido, nauseabundo mesmo, com duas pequenas e curiosas protuberâncias na região frontal, separadas por uma tez alva e aveludada, porém quente e úmida... como nosferatus. Tinha uma voz de taquara rachada e movimentos calmos e calculados. Alguns acreditam tratar-se de Lúcifer, outros do anjo Gabriel. Ninguém sabe ao certo, nem qual o diálogo travado entre os dois durante três dias e três noites, perfazendo um total de sete dias de retiro. O fato é que depois desse fatídico enfrentamento, Lucarélio mudou mais uma vez seu comportamento, alardeando, sempre que oportuno, sua condição de ateu convicto, afirmando desprezar as coisas sagradas invisíveis, seja para o bem ou para o mal.
            Em verdade, somente ele poderia desvendar, confirmar ou desmentir tantos mistérios e enigmas que envolvem sua vida. Mas que ninguém se iluda, provavelmente irão para o forno crematório, juntamente com ele, no dia da sua verdade suprema quando, como ele mesmo afirma, sairá da linha histórica do tempo e do espaço para entrar na eternidade etérea, representada simbólica e indiretamente por seus dependentes e obras literárias, genialmente escritas em despretenciosos momentos de lucidez, alucinações e orgasmos mentais advindos das masturbações circunstanciais do seu cotidiano.
            Retornou pra casa beneficiado por um resquício de abertura política, onde exigia-se uma pretensa anistia ampla, geral e irrestrita. Sua chegada foi melancólica, sendo saudado apenas por familiares próximos e por um e outro companheiro de luta. Não se importou muito, afinal de contas, conforme relatado no primeiro conto da sua trilogia chamado ¨DESESPERO¨, nunca foi de muitos amigos, guardando em seu coração o sentimento de amizade e lealdade para poucos, que também correspondiam e correspondem no mesmo nível.
            Era um homem diferente daquele que, há alguns anos atrás tinha partido da sua indizível e ensolarada terra. Sentia-se desanimado, descrente com as pessoas, com as coisas de lá e cá, mas tinha que continuar, precisava sentir-se levado pela força estranha que emanava do seu espírito, que também, semelhante ao pai, vivia atormentado entre Apolo e Dionísio, numa trágica conjunção mística jamais compreendida pela razão.
            Seus conhecimentos de medicina foram determinantes na sua vida... iniciou tratamento com bromazepam para nunca mais abandoná-lo.
            A necessidade de trabalhar era imperiosa para restabelecer seu equilíbrio emocional, estético e material. Não encontrou dificuldades para reiniciar suas atividades pedagógicas em colégios de boa reputação na cidade, apesar dos problemas emanados da difícil relação com alguns alunos tipo ¨filhinhos de papai¨, visto que agia com extremo rigor e seriedade nas suas pretensões docentes, mas que, contraditoriamente, impressionavam a todos que tinham o privilégio de assistir suas aulas, a ponto de, anos depois, ainda ser reconhecido como um dos melhores professores por seus antigos discípulos escolares. Por essa época seu talento também fazia sucesso com as professoras e estudantes incautos, de comportamento sexual não convencional.
            Assumiu como médico concursado no hospital universitário, trabalhando ativamente na especialidade que abraçou com entusiasmo no início da sua carreira, talvez influenciado por uma das personagens mais fortes e marcantes da sua existência, daquelas que embaralham sentimentos de paixão, sexo e amor no mais recôndito e nebuloso receptor neuronal extraviado, para petrificar n´alma e ficar à deriva no tempo.
            Para não contrariar sua natureza dinâmica e inconstante, dedicou-se a um outro ramo da medicina, indo estudar num dos melhores centros médicos do país, especializando-se na medicina por imagem, provavelmente pela necessidade que tinha de viver entre o virtual e o real, espaço onde sentia-se verdadeiramente autêntico, pois sua falsidade tinha limites quando tratava intimamente com seres humanos, mormente quando estes não se encontravam em condições nosológicas. Nesse período iniciou uma parceria de trabalho com um colega de profissão que extrapolaria as relações laborais e transcenderia para além da amizade.
            Enveredou, concomitantemente, pela área burocrática da medicina, tornando-se um respeitável auditor médico, sendo logo convocado por uma das grandes empresas do setor. Suas convicções éticas impediram que continuasse uma relação financeira favorável para si, visto que o preço a ser pago atingia em cheio sua crença nos valores que alicerçavam sua dignidade humana. As relações trabalhistas com pessoas complexadas, autoritárias e medíocres, principalmente as detentoras de poder institucional, já começavam a incomodar Lucarélio, qua respondia com um comportamento irreverente, irônico e propositalmente hebefrênico, além da publicação de textos geniais e críticos, muitas vezes metafóricos, obscuros e recheados de simbologia, que somente poucos tinham o entendimento do seu significado.
            Logo depois ingressou nessa empresa de saúde na qual trabalha até hoje, pois sua identificação com a qualidade e seriedade imposta pelo trato administrativo da mesma eram melhores e suportáveis, assim como a relação com alguns colegas de trabalho e profissão. Encontrou guarida e apoio num dos pilares médicos da empresa, que tratou-o com a devida consideração e respeito, reconhecendo e valorizando seu talento profissional, humano e literário.          
            Conheceu os dois personagens fraternos mais importantes da sua atualidade, seus fiéis escudeiros Sancho e Pança, também aquela que poderia ser sua Dulcinéia, com os quais fundou o núcleo duro de uma confraria que ficaria marcada na história da empresa e da cidade na qual viviam. Sua dependência afetiva com os dois fugiu do seu controle, fazendo com que seus sentimentos contraditórios flutuassem de um polo- o racional, a outro - o emocional , pois sempre contava com a segurança dos dois para não cair no temido abismo irreversível da loucura.
            E agora, ali estava ele, refletindo sobre as origens de tamanho mal estar, melancólico e desolado pela falta de perspectiva para um homem que tanto viveu e... quase morreu. Que tanto amou... e quase odiou. Que tanto trabalhou... e quase mendigou. Que tanto riu... e quase padeceu.
            Pensava em Sísifo e no enorme peso da sua pedra. Será que ainda podia ter esperança? Triste e resignado continuou seu caminho.

Julius Galeno

Texto dedicado aos padeiros Serrano e Moacir que, apesar de ainda conseguirem se indignar com as injustiças cometidas contra os mais fracos, com os pedantismos do pseudo poder institucional, as mazelas decorrentes do persistente esforço do homem em superar o egoísmo do outro em favor do seu e a vacuidade universal instalada no mundo consequente à proliferação da mediocridade humana, não encontram forças e meios para reagir, buscando na embriagues delirante do vinho (ou da cerveja), no supremo prazer dos carinhos da mulher amada, no espaço perfeito da arte e na transcendental amizade virtuosa, a resignação para suas existências forçosamente limitadas.

Fortaleza, quinta feira, 17 NOV 2005

https://youtu.be/K2pV_tJsIF0
(Caçador de Mim - Milton Nascimento)
Marco Florentino
Enviado por Marco Florentino em 15/02/2017
Alterado em 16/09/2021
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