FRONTEIRAS DA SOLIDÃO
FRONTEIRAS DA SOLIDÃO
Estranha sensação invadia o corpo de Vilberto ao cruzar a fronteira entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba. Inexplicável sentimento, misto de segurança, euforia, otimismo e porque não dizer encontro, de tal forma tão exacerbado que acreditava, em seu mais profundo silêncio, ser criado e legitimado pela alma. Sim, nessa hora Deus se revelava mais forte do que nunca... Deus estava nele e ele em Deus.
Ao avançar pela estrada em seu fusca do ano, conquistado com tanto sacrifício, admirava a paisagem verde dos canaviais ao som de ¨Hoje¨, ¨Yesterday¨, ¨Time¨, ¨Roda Viva¨. Sentia-se jovem no vigor de seus vinte e seis anos e jovial no vigor da sua certeza. Valia a pena estar vivo, existir naquele tempo, lugar, mundo... naquele corpo.
O cheiro da terra, do mato e até mesmo o aziumado odor das usinas de cana de açúcar chegavam-lhe doces, levando-o a respirar compassadamente, concentrando-se em cada momento de inspiração e expiração... bendita dialética que mantém a vida.
Vez por outra alguém sinalizava pedindo carona, gente cansada, surrada, moribunda, mas ele não podia interromper aquele momento mágico que era dele, somente dele. Colocava-se frente a si mesmo sem remorsos, afinal a viagem de Natal para João Pessoa durava apenas duas horas e três latas de cerveja, compradas na equidistância geográfica de São José do Mipibú, Goianinha e Mamanguape. Era o suficiente, não queria perder seu equilíbrio racional... sua estética emocional.
Na velocidade cansada do seu ¨bólido¨, buscava prolongar agradável estesia recusando-se a pensar nas misérias que insistiam em atazanar-lhe. Considerava também a reduzida frequência de tão especial acontecimento íntimo pois, desde que começara a trabalhar como enfermeiro do Hospital de Pronto Socorro de Natal, era obrigado a viajar todas as segundas-feiras, no germinar do dia, e voltar às sextas-feiras, no avelhantar da semana...era uma sexta-feira.
Inevitável pensamento teimava em evocar as lembranças da sua origem. Filho legítimo da condição urbana, nasceu e foi criado numa grande metrópole do sul do país. Como entender apego tão forte a uma pequena e provinciana cidade nordestina, depois de conhecer e vivenciar tantas vidas e concretos da sua identidade pátria?
Procurava em seu íntimo explicação lógica por ter deixado a companheira e o casal de filhos nesta cidade sedutora, arrebatadora e tão desconhecida do mundo... não mudou residência, definitivamente João Pessoa era sua morada.
A excitação d´alma crescia à medida que se aproximava o platô de Mamanguape, cognome mais adequado para a pintura de território que circundava o lugarejo que lhe emprestava o nome. Cumprimentou a torre telefônica, princesa imponente em seu reino. Acenou para os patrulheiros rodoviários que, indolentemente, reconheciam nele apenas mais uma rotina de trabalho e de vida.
Depois de renovar as forças na terceira estação do caminho, já revigorado em sua energia alcoólica, atravessou os torpes barracos circundantes devorando ansioso o asfalto que se alimentava da sua fome. A agonia se justificava, logo mais estaria avistando João Pessoa, visão indescritível... emoção invasora... alegria dominadora.
Ao afagar o horizonte querido, lembrou do colorido pôr do sol contemplado do ¨Bar Bistrô¨, em meio ao contraste do antigo com o novo; a Igreja das Neves e o prédio do INSS; a Casa da Pólvora e a fábrica de cimento na entrada dessa aprazível cidade; as pedras da Ladeira Borborema e a imponência do viaduto que desembocava na rodoviária.
Neste dia avistou, na cegueira da noite, um clarão ao longe, pras bandas do sertão e transportou seu espírito para o instante em que vislumbrava o seu próprio olhar no sentido oposto, em meio às queimadas, a caminho do repouso merecido do lar... aumentou o som, acelerou mais forte e na frente de um caminhão desviou da morte, que lhe cobrou caro a sorte.
Acordou com vozes desconhecidas, em local ignorado. Não conseguia ver, sentir, chorar ou gritar, nem sequer gemer, porém encontrava-se misteriosamente tranquilo, sereno, senhor de si. Ouviu a voz da companheira perguntando quanto tempo duraria o coma. Percebeu os soluços inaudíveis dos filhos, mesmo assim continuou imperturbável, numa paz profunda nunca antes experimentada... apagou.
Ao acordar novamente, indagou a si mesmo se tudo aquilo não passava de um sonho, visto que nada sentia ou desejava, nada lhe perturbava ou agredia, parecia flutuar no vazio. Seu pensamento era a única força dinâmica em seu espírito e já lhe bastava.
Algumas palavras faladas por pessoas estranhas soavam-lhe familiares, fornecendo certo indício e compreensão da sua situação. Mandavam desobstruir o tubo traqueal, avaliar a midríase bilateral e o movimento ocular; testar a função motora, atentar para a respiração e pressão arterial; as condições hemodinâmicas, providenciar tomografia computadorizada, monitorar a pressão intracraniana, registrar potencial evocado, solicitar gasometria, dosagem de eletrólitos, equilíbrio ácido básico e tantas outras coisas que fazia no seu dia a dia.
Já sabia aonde e como estava, mas a tudo continuava indiferente, sem esboçar mínima emoção. Talvez até sentisse um leve prazer, entretanto sua capacidade de sentir desaparecera.
Recordou mais uma vez sua infância, feliz em meio às dificuldades de uma família proletária, no subúrbio envaletado de uma cidade próspera, convivendo desde cedo com as dificuldades financeiras e com a morte, apesar de passarem distante da sua atenção... abençoada capacidade de análise infantil.
A transferência para outras plagas, especificamente o nordeste e o choque cultural vivido intensamente no inicio das relações sociais, eram marcantes em sua memória. Não imaginava haver em outros lugares condições mais carentes e miseráveis que as já vistas em seu torrão natal. Assim mesmo teve rápida adaptação e continuou em frente... abençoada capacidade de reação juvenil.
Casou muito cedo, mas não se arrependeu. Não sabia se tinha amor ou necessidade, o importante era o referencial de abrigo qua sua circunstância exigia. Vieram dois filhos, nascidos com o despertar da maturidade. Era um bom pai, mas tinha maior aproximação com a menina.
Ao pensar em sua vida, não conseguia definir se tinha sido feliz ou não. Inevitavelmente refletiu sobre o sentido da sua existência e questionou se o pouco tempo que dedicou ao Deus das religiões dos homens não teria alterado o seu destino... não mais lhe importava, pensava agora que o existir talvez não fosse real numa perspectiva determinista que se quer estabelecer. Lembrou das palavras do escritor português Antero de Quental em seus sonetos: ¨Sempre o mal pior / É ter nascido¨.
Não tinha ideia de quanto tempo estava nessa condição clinica e de quantas vezes tinha acordado e apagado. Certa ocasião ouviu alguém perguntar a outra pessoa se ele não estraria vendo, ouvindo ou sentindo alguma coisa. Ele mesmo em seu trabalho, frente a pacientes graves e comatosos já tinha se interrogado a respeito. A rotina alucinante da UTI impedia a resposta.
Nessa mesma ocasião, uma movimentação diferente ocorreu à sua volta. Gritos, correrias e ordens se confundiam em torno do seu leito. Ouviu alguém avisar que usaria o desfibrilador, enquanto outro retrucava que não, pois o paciente já estava parado em assistolia e por isso iria aplicar adrenalina. A toda essa agitação, Vilberto continuava impassivo, inerte, flutuando.
Lentamente, pela primeira vez desde que ali dera entrada, começou a sentir algo. Percebeu de imediato que era a mesma sensação de invasão sentida ao cruzar a fronteira entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba.
QUE A TERRA LHE SEJA LEVE.
Julius Galeno
OBS: Primeiro conto escrito por Marco Antônio Abreu Florentino, em 1995 na cidade de João Pessoa / PB para um concurso literário, com o pseudônimo de Julius Galeno, à época da graduação em filosofia pela UFPB.
Marco Florentino
Enviado por Marco Florentino em 10/11/2015
Alterado em 10/11/2015